Cidades sustentáveis e a responsabilidade do município quanto à regulamentação de lotes irregulares
- fragueiro1969
- 1 de out. de 2021
- 10 min de leitura
Contextualizando o leitor, propõe-se aqui uma suscinta reflexão acerca da extensão da responsabilidade do ente municipal em relação à implementação da infraestrutura necessária à regularização de loteamento irregular. Afinal, pode-se responsabilizar o município, na condição de idealizador e gestor das políticas públicas de desenvolvimento urbano, pela realização das obras de engenharia capazes de promover o bem-estar dos moradores já instalados?
Antes, porém, de se adentrar ao tema central do presente artigo, convém que seja feita uma breve incursão pelo histórico de crescimento desordenado apresentado nas últimas décadas pelos grandes centros urbanos brasileiros.
A partir do êxodo rural, movimento migratório de pessoas da zona rural com destino ao meio urbano em busca de melhores condições de vida que marcou a década de 60 no Brasil, verificou-se um considerável inchaço da população residente nas cidades, fato que contribuiu, sobremaneira, para um crescimento desordenado de alguns centros urbanos.
Para ilustrar tal cenário que marcou, precipuamente, a segunda metade do século XX, vale citar a obra Morte e Vida Severina, escrita por João Cabral de Melo Neto (1955), que retrata a trajetória de um migrante sertanejo em busca de uma vida mais fácil e favorável na capital pernambucana.
De outro vértice, com o objetivo de promover o povoamento do interior do país, com o consequente deslocamento da sede do governo federal, nascia Brasília, no Distrito Federal, cidade com ares de modernidade, cujo plano urbanístico, conhecido por plano piloto, foi elaborado pelo arquiteto e urbanista Lúcio Costa, tendo sido planejada e desenvolvida conjuntamente com o renomado arquiteto Oscar Niemayer e com o engenheiro estrutural Joaquim Cardozo.

Vale mencionar, que Brasília carrega consigo o título de maior cidade construída no século XX, encontrando-se entre as cidades mais populosas do Brasil, com maior produto interno bruto per capita em relação às capitais brasileiras.
Pois bem, o fato é que o crescimento desordenado das cidades trouxe consigo o surgimento de favelas e outras modalidades de assentamentos humanos, invariavelmente habitados famílias de baixa renda. Aliás, tal cenário foi retratado no filme Cidade de Deus, dirigido por Fernando Meirelles, que atesta uma triste realidade social, consubstanciada na exclusão social a partir da construção de cidades – relegadas à própria sorte – destinadas a abrigar os menos favorecidos.
Com a ocupação desordenada do território surge o denominado dano urbanístico, consubstanciado no ingresso paulatino de novos moradores, os quais passam a demandar serviços públicos e aparelhos estatais, a exemplo de escolas, postos de saúde, delegacias, dentre outros.
Feito tal introito, convém destacar que, consoante o disposto no artigo 3.º, da Lei n.º 6.766/79, o parcelamento do solo urbano somente será admitido em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, em consonância com as respectivas definições trazidas pelo plano diretor ou aprovadas por lei municipal, sendo vedado o parcelamento em áreas de risco ou protegidas, a exemplo de terrenos alagadiços e sujeitos a inundações.
No tocante à infraestrutura básica dos parcelamentos, deve esta ser constituída pelos equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, iluminação pública, esgotamento sanitário, abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar e vias de circulação (art. 2.º, § 5.º, Lei n.º 6.766/79).
Ainda, cumpre destacar que efetuar loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos sem autorização do órgão público competente, ou em desacordo com as disposições legais, tipifica crime contra a administração pública (art. 50, Lei n.º 6.766/79).
Por seu turno, o constituinte inscreveu no artigo 182, da Constituição da República de 1988, que a política de desenvolvimento urbano, a ser executada pelo ente público municipal em respeito às diretrizes gerais fixadas em lei especial, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, bem como garantir o bem-estar de seus habitantes.
Destarte, nas cidades com mais de vinte mil habitantes, o plano diretor, de competência da Câmara Municipal, aparece como sendo o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.
Como corolário disso, objetivando a regulamentação dos artigos 182 e 183, da Constituição Federal, foi promulgada a Lei n.º 10.257/01, que fixa diretrizes gerais da política urbana, cujo artigo 39 estabelece que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando, por conseguinte, o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas.
Referida legislação previu, ainda, a gestão democrática da cidade, valendo destacar dentre os instrumentos de garantia previstos em lei, a iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano (art. 43, IV, Lei n.º 10.257/01), o que confere à própria população o direito – e o dever – de zelar pelo desenvolvimento da cidade.
Comentando sobre referido diploma legal, vale transcrever os ensinamentos do eminente constitucionalista José Afonso da Silva[1], que leciona:
“O Estatuto da Cidade, baixado pela Lei 10.257, de 10.7.2001, é que estabelece diretrizes gerais da política urbana, ao regulamentar os arts. 182 e 183 da CF. Assume ele, assim, as características de uma lei geral de direito urbanístico, talvez com certo casuísmo exagerado. Assim mesmo, cumpre ele as funções supra-indicadas de uma lei geral, na medida em que instituiu princípios de direito urbanístico, disciplina diversas figuras e institutos do direito urbanístico, fornece um instrumental a ser utilizado na ordenação dos espaços urbanos, com observância da proteção ambiental, e a busca de solução para problemas sociais graves, como a moradia, o saneamento, que o caos urbano faz incidir, de modo contundente, sobre as camadas carentes da população.”
A título de curiosidade, o agravamento dos problemas socias e a escassez de moradia digna fez surgir no ordenamento jurídico o denominado direito real de laje, instituto sui generis que consiste na possibilidade de coexistência de unidades imobiliárias autônomas de titularidades distintas situadas em uma mesma área, de maneira a permitir que o proprietário ceda a superfície de sua construção a fim de que terceiro edifique unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo (art. 1.510-C, CC).
O instituto sob enfoque foi pensado pelo legislador com o propósito específico de trazer uma solução jurídica, principalmente, às famílias de baixa renda que, premidas pela necessidade de sobrevivência, alienam a terceiros o direito de construir sobre a laje, o que não confere direito à titularidade de uma fração ideal do terreno ao beneficiário, traduzindo-se, pois, em verdadeira demonstração de não inclusão, falta de segurança e ausência de sustentabilidade.
Entretanto, como o direito não escapa de promover a regularização de determinados fatos, deve-se respeitar a iniciativa do legislador de promover a inclusão jurídica de inúmeras construções erigidas sobre as lajes de imóveis situados, em regra, nas regiões periféricas e favelas brasileiras, cujo cenário sempre serviu como fonte de inspiração ao meio artístico.
Não obstante, o enorme déficit habitacional acabou por contribuir para o surgimento de loteamentos irregulares que desrespeitam o parcelamento do solo urbano, colocando em risco o desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, e, consequentemente, o direito a cidades sustentáveis, o qual abarca o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações (art. 2.º, I, Lei n.º 10.257/2001).
A partir de tal cenário, cumpre indagar acerca da responsabilização, ou não, do município quanto à implementação da necessária infraestrutura apta a promover a regularização do loteamento.
Regra geral, a lei confere ao loteador a incumbência de implementar as condições mínimas e necessárias à regularização do empreendimento, facultando-se à municipalidade, mediante ressarcimento financeiro, proceder a implementação das condições necessárias à regularização do empreendimento privado.
Todavia, tratando-se de poder-dever do ente municipal, tem os Tribunais decidido, uma vez constatada omissão do município em fiscalizar a ocupação do solo urbano e seu parcelamento, pela responsabilidade solidária do município, senão veja-se:
“EMENTA: Ação civil pública. Loteamento irregular. Condenação solidária do loteador e do Município à regularização. Cerceamento de defesa não ocorrido. Imóvel encontrado em nome do loteador que, de fato, não corresponde à área do loteamento. Posse de referida área e negociação dos lotes, todavia, confessas e comprovadas pela prova dos autos. Condenação à reparação dos danos e demolição das construções em Área de Preservação Permanente que se fez conforme apurada em liquidação e que não afasta o dever de regularização. Herdeiro do loteador que deve também responder, nos limites da herança e por força de lei própria. Afastadas as preliminares de ilegitimidade passiva, litisconsórcio necessário e impossibilidade jurídica do objeto levantadas pela Municipalidade. Município que tem poder-dever de fiscalização. Responsabilização, em regra subsidiária, que se impõe solidária nos casos de omissão do poder público, como nos autos. Leis 11.977/2009 e 13.465/2017 que apenas estabelecem instrumentos de regularização fundiária, sem afastar o dever de regularização. Alegações de ausência de previsão orçamentária e reserva do possível sem base na prova dos autos e que não obstam condenação que traduz dever já insculpido em lei. Igualmente não configurada violação à separação dos Poderes. Sentença mantida. Recursos desprovidos.” (AC n.º 0001790-83.2010.8.26.0126 – Relator: Claudio Godoy – Órgão Julgador: 1.ª Câmara de Direito Privado TJSP – Data do Julgamento: 19/08/2019)
Tal orientação é confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça, sendo oportuno mencionar, a título ilustrativo, o REsp n.º 859.905/RS, da relatoria do Ministro Mauro Campbell Marques, da Segunda Turma, datado de 01/09/2011, que distingue em seu bojo duas situações.
Na primeira, a administração pública age enquanto é possível exigir do empreendedor o cumprimento de suas obrigações, facultando-se ao município (discricionariedade) a utilização de recursos públicos mediante ressarcimento.
Na segunda situação, constata-se omissão da municipalidade em exigir a observância das normas legais, com consequente violação do direito à infraestrutura e prejuízo aos moradores, impondo-lhe, em respeito ao princípio da indisponibilidade do interesse público, a responsabilização pela regularização do loteamento.
Pelo entendimento adotado no aludido precedente, possível inferir que, em um primeiro momento, a responsabilidade seria do empreendedor. Contudo, não sendo mais possível exigir-se do empreendedor o cumprimento de suas obrigações, e uma vez constatada omissão por parte da municipalidade, caberá ao município responder pela regularização do loteamento, garantindo-se, assim, o direito a cidades sustentáveis disposto em lei (art. 2.º, I, Lei n.º 10.257/2001).
Entretanto, noutro julgado do STJ (REsp n.º 1.164.893/SE), o ilustre relator, Ministro Herman Benjamin, pondera quanto aos limites do dever municipal, em especial no tocante aos loteamentos clandestinos, ou seja, não aprovados pela Prefeitura Municipal, salientando que o dever-poder atribuído ao ente municipal não seria absoluto.
A partir de tal exegese, seria possível atribuir a responsabilização do Município apenas em relação às obras essenciais a serem implantadas, em conformidade com a legislação urbanística local, evitando-se, assim, eventual inversão de valores e prioridades, senão veja-se:
“(...).
A rigor, mais importante do que discutir se há discricionariedade ou dever-poder de regularizar loteamentos (e, sem dúvida, dever-poder existe!) é reconhecer que a atuação da Prefeitura não serve para beneficiar o loteador faltoso. Sem falar que vai muito além de garantir os direitos dos adquirentes de lotes prejudicados pela omissão, pois incumbe ao Administrador, também por força de lei, considerar a cidade como um todo e os direitos dos outros munícipes à qualidade urbanístico-ambiental.
O que deve orientar a atuação do Município é, essencialmente, o interesse coletivo na observância aos ‘padrões de desenvolvimento urbano’ (art. 40, caput, in fine, da Lei Lehmann), para atender às ‘funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes’ (art. 182, caput, da CF).
Isso, como é fácil perceber, nem sempre é observada, ao se impor ao Município, simples e automaticamente, a imediata regularização de um dado loteamento, quando há situações mais graves e urgentes de degradação urbana e de dignidade da pessoa humana em outros bolsões de pobreza.
Exemplifico com incontáveis loteamentos clandestinos e irregulares que implementam condomínios de veraneio suntuosos em áreas de beleza natural privilegiadas. Muito comumente, esses empreendimentos formam ilhas de luxo encravadas e muradas em regiões que, em contraste, não oferecem aos moradores permanentes condições adequadas de saneamento, mobilidade urbana, segurança, etc.
Incabível impor ao Município o asfaltamento, por exemplo, de um condomínio de veraneio ou de classe média se as ruas da cidade, que servem diariamente os moradores permanentes ou os em pobreza extrema, não possuem esse melhoramento.
Inviável ainda obrigá-lo a implantar calçadas e vais em um condomínio de luxo, apenas porque o loteamento não foi completado, se o restante da cidade, onde moram os menos afortunados, não conta com iluminação pública ou esgotamento sanitário.
Seria verdadeira inversão absurda de prioridades, ou distribuição invertida de riqueza, dos mais necessitados para os mais afortunados.
Em síntese, o juiz dos fatos haverá, na apuração da responsabilidade estatal, de estar atento a esses conflitos para definir, entre as prioridades urbanístico-ambientais, o que é mais importante.
Compete ao governo local implementar sua legislação urbanística, em especial seu Plano Diretor, à luz das diretrizes constitucionais. São elas que determinam o que é prioritário e orientam o direcionamento dos recursos públicos, previstos na legislação orçamentária.
Nesse contexto, a intervenção do Judiciário, determinando a atuação da Prefeitura, caberia apenas na hipótese de descumprimento das políticas urbanísticas locais, conforme traçadas na legislação aplicável.
A jurisprudência do STJ pacificou-se no sentido de que há um dever do Município de regularizar os loteamentos, inexistindo margem para discricionariedade.
O dever-poder, contudo, não é absoluto, nem mecânico ou cego, competindo à Municipalidade cumpri-lo na forma dos padrões urbanístico-ambientais estabelecidos na legislação local, estadual e federal. E, naquelas hipóteses em que os óbices não ensejem a regularização, a única solução é a remoção, de modo a garantir habitação digna, que respeite as exigências da lei’.
(...).”
Embora a jurisprudência dominante atribua ao ente municipal, responsável pela implementação da política urbana, o dever de zelar pelo cumprimento das políticas urbanísticas locais, impondo-lhe, por conseguinte, o ônus da regularização dos loteamentos irregulares, tal dever-poder não é absoluto, devendo ser sopesada – no caso concreto – a extensão de tal responsabilidade, sob pena de grave inversão de valores, em detrimento do interesse coletivo.
Por derradeiro, quando possível identificar o empreendedor ou titular da área, importante abordar a questão do prazo prescricional atinente à cobrança por providências e custeio para a regularização, cuja contagem não se esgota com a passagem do tempo, tratando-se de renovação contínua do prazo prescricional enquanto perdurar a omissão do empreendedor.
Nesse sentido, é o magistério jurisprudencial, convindo trazer à baila, a título ilustrativo, julgado colhido da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, cuja ementa informa:
“EMENTA: APELAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MUNICÍPIO DE SÃO JOSÉ DO RIO PRETO. LOTEAMENTO IRREGULAR. PRESCRIÇÃO. 1. Inocorrência. Dano à ordem urbanística, decorrente da implantação de loteamento irregular, que é permanente e se que protrai no tempo. Enquanto persiste a situação danosa, não há se falar em prescrição, porque o prazo se renova a cada ato. Sentença anulada, para regular prosseguimento do feito e realização de prova pericial. 2. Embora a conduta vedada seja a venda de lotes sem o prévio registro do parcelamento, não são as vendas, em si, que caracterizam o dano urbanístico. O dano urbanístico se dá com a ocupação desordenada do território, com o ingresso paulatino de novos moradores que passam a exigir serviços públicos e aparelhos estatais, como escolas, postos de saúde, delegacias etc. O dano urbanístico não se concretiza de inopino ou numa data determinada. O dano, em casos de ocupação ilegal, é gradual, progressivo. 3. A conduta omissiva do empreendedor pode ser revertida a qualquer tempo. Está dentro da esfera de decisão do empreendedor, mesmo depois de iniciadas vendas ilegais, a cessação de sua omissão e a tomada de providências de adequação à lei de parcelamento do solo. Uma sequência de atos pontuais, lesivos, constroem o dano urbanístico, considerado como um todo. 4. Não se trata, propriamente, de imprescritibilidade, mas de renovação contínua do prazo prescricional, enquanto perdura a omissão do empreendedor. RECURSO PROVIDO, COM DETERMINAÇÃO.” (AC n.º 0027310-73.1998.8.26.0576 – 2.ª Câmara de Direito Público TJSP – Relator: Alves Braga Junior – Data do Julgamento: 06/09/2019)
Assim sendo, nada obsta que o ente municipal, persistindo a omissão, e uma vez identificada a figura do empreendedor ou titular da área, possa, a qualquer tempo, promover eventual demanda judicial objetivando reverter o dano urbanístico.
Pode-se concluir, pois, não ser possível imputar ao ente municipal, de forma indiscriminada, a responsabilização integral pela regularização dos loteamentos irregulares, cabendo ao Poder Judiciário, quando provocado, definir a extensão da responsabilidade estatal a partir das peculiaridades do caso concreto.
[1] SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5ª edição revista e atualizada. Editora Malheiros: São Paulo, 2008, p. 69.
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